sexta-feira, agosto 27, 2010

Eu, sou do Bairro Alto


Eu, sou do Bairro Alto!!!



No meu bilhete de identidade diz: nascido em Alcântara, mas deveria dizer nascido no Bairro Alto, pois foi aí que fui feito, mais propriamente na Rua São Boaventura n.º 87, para onde fui viver assim que saí da maternidade e onde vivi até aos 10 anos.
Vivi a minha infância e grande parte da adolescência nesta zona típica de Lisboa de ruas estreitas e empedradas adjacentes às zonas do Carmo e do Chiado, designado como Bairro Alto, outrora conhecido como Vila Nova dos Andrades
Convivi com cenários e personagens que me deixaram uma memória muito rica (e motivadora), na companhia do meu pai Cresci por redações de jornais já extintos, o Conservatório Nacional (local de trabalho dos meus pais durante vários anos), os bares e casas de fado, bailarinas e arlequins...
Conheci a “fina flor “ das artes e da cultura, na Brasileira do Chiado ou no Coche Real e as suas tertúlias. O meu imaginário infantil está repleto de personalidades públicas que conheci nesse tempo das quais destaco:
O Dr. Gustavo Soromenho, João Mota, Abílio Belo Marques, Carlos Paredes, Adriano Correia de Oliveira, Maluda, Baptista-Bastos, Beatriz Costa, Jesus Ferreira, Agostinho da Silva, Maestro Vitorino de Almeida entre dezenas de outros, que todos os dias tomavam café com o meu pai e que eu acompanhava desde bebé.
Acho que quase tudo o que fiz na minha vida começou no Bairro Alto, senão vejamos: dei os meus primeiros passos nos jardins Príncipe Real e São Pedro de Alcântara; Aprendi a Ler na Rua Luz Suriano onde fiz a escola primária mesmo ao lado do extinto “Diário Popular”; Sobre a minha escola primária, tenho ainda uma estória curiosa, todos os dias antes de ir para as aulas, passava na Rua da Rosa numa padaria que ainda hoje lá existe e comprava, duas bolas de Berlim fresquinhas, acabadinhas de fazer e que levava-as comigo para comer no intervalo. A minha pasta da escola tinha sempre um cheirinho a bolas de Berlim que ainda hoje guardo na minha memória. Nunca mais comi bolas de Berlim como aquelas…
Como já disse, os meus pais trabalhavam no Conservatório Nacional e assim que acabavam as aulas, eu ia para lá e levava os meus colegas da escola para brincarmos. Eles ficavam maravilhados, pois todos os dias conheciam ao vivo e a cores, os actores que lhes entravam pela casa adentro através das Tv´s,. Estou a lembrar-me do Rui Mendes que na altura fazia a serie portuguesa “Duarte e Companhia”, São José Lapa, João Mota, José Peixoto que fazia a serie “Retalhos da Vida de um Medico” e muitos outros… Lá brincávamos livremente, por entre pianos e cenários de uma ou outra peça de teatro ou ópera. Ouvíamos os músicos a tocar e víamos os actores a ensaiar as suas peças. Às vezes íamos ver o meu pai pintar, o que era sempre uma maravilha.
No Bairro Alto tive contacto, com as primeiras exposições de pintura e com as primeiras tertúlias de intelectuais que falavam de assuntos que me viriam  a ajudar no meu crescimento intelectual que para algumas pessoas, até foi precoce…Uma vez numa dessas tertúlias e, como via todos os desenhos feitos nos papéis das mesas, eu também desenhei um. Fiz um retrato do meu pai. Um amigo do meu pai que lá estava, achou piada ao desenho e perguntou-me o que ele representava, ao que eu respondi:
É o retrato do meu pai, que também é artista… No dia seguinte esse desenho saiu no Diário Popular com a seguinte legenda:
“Sou o Henrique Tiago, tenho 4 anos e desenhei o meu pai que também é artista”.
Ah! esse amigo do meu pai era o Mestre Zé de Lemos que fazia o “Riso Amarelo”, no Diário Popular.
Aqui ainda andei na Escola Preparatória Fernão Lopes na Rua das Chagas e depois passei para a Escola Secundária D. Maria I, na Calçada do Combro, escola esta já extinta.
Foi na Biblioteca Municipal Camões que em 1995 fiz a minha primeira exposição individual de pintura, onde estiveram presentes várias personalidades entre as quais o escritor Altino do Tojal, o actor Ricardo Amaro, os jornalistas Manuel Geraldo, Raúl Oliveira, José Matos Cruz e o Dr. Raul Rego que sobre essa exposição escreveu o seguinte:
“Henrique Tigo é filho do pintor H. Mourato, logo está tudo dito. Embora na sua pintura nada os una.
Henrique Tigo é um pintor - livre dos Novos Tempos, é um poeta. Pois para podermos ver a sua pintura, primeiro temos de a ler.
É um pintor original e sensualista agarrado à grande esperança de um Mundo melhor”.
Foi na FAUL, bem em frente ao Jardim São Pedro de Alcântara que entrei para a política também pela mão do saudoso Dr. Raul Rego e pelo Eng. António Guterres.
O mundo dá muitas voltas e passados 30 anos volto para o Bairro Alto, desta vez para trabalhar pois trabalho na Santa Casa da Misericórdia de lisboa, no Largo Trindade Coelho, local onde em criança ia levar as minhas vacinas e onde adquiri uma fobia a seringas.
Mas para mim o Bairro Alto era algo mais, pois nos anos 30 e 40 começaram a dar-se as grandes massas de deslocação populacional, do norte a sul para a capital. Para o Bairro Alto vieram muitas pessoas “Beirãs”, entre as quais os meus avós maternos, que depois de terem casado na Igreja da Encarnação, no Largo Camões e foram morar para a Rua dos Mouros. Foi aí que o meu pai começou a trabalhar numa tipografia, que ficava nessa rua e foi também aí que ele então conheceu e se apaixonou pela minha mãe.
Neste bairro, viviam centenas de pessoas da “terra” nome que se dava a quem era do mesmo concelho e morava em Lisboa. Tinha então, a morar no Bairro Alto, tios, primos e primas.
Bairro Alto é um dos bairros mais pitorescos da cidade com casas seculares e pequeno comércio tradicional, como o Lugar do “Zé do Lugar” que vendia todo o tipo de vegetais e pequenos animais vivos como coelhos, gatos e galinhas. Tínhamos ainda a taberna do “Zé Barata” onde provei pela primeira vez uma pastilha elástica.
Esta zona típica foi construída mais ou menos em plano octogonal em finais do século XVI.
Mudam-se os tempos e o Bairro Alto mudou, deixou de ser uma “Aldeia” dentro da cidade, onde era normal verem-se as chaves na porta ou as portas abertas, para nos anos 80 do século passado, ser a zona mais conhecida da noite Lisboeta, com inúmeros bares e restaurantes a par das casas de Fado. Abandonaram o bairro quase todos os órgãos de imprensa portugueses, o Conservatório Nacional, e as tipografias, com a chegada dos computadores, começaram as fechar ou a mudarem-se para locais mais sossegados.
Parte dos prédios foram ou estão a ser recuperados, mantendo-se a traça original dos mesmos, o que veio permitir a instalação de novos e alternativos espaços comerciais, vendo-se agora desde lojas de multimarca a lojas de tatuagens e body piercing.
Fala-se que o Bairro Alto era uma zona de prostituição e alguma criminalidade, é verdade, mas havia uma certa ética. Quem se dedicava a esse tipo de actividades, não se metia na vida dos moradores e até os “protegiam”. Lembro-me que há pouco tempo, já não vivia no Bairro há mais de 10 anos, tive uma sessão Maçónica ao Bairro Alto à noite, que acabou muito tarde. Quando saí dessa sessão e me deslocava para um Táxi passei, numa rua mais isolada e sombria e vi um grupo dirigir-se a mim… de repente oiço uma voz a dizer:
- É, pá! Não te metas com esse…, ele, nasceu cá no Bairro!
E desapareceram! Eu segui a minha vida e eles a deles, até hoje estou para saber quem foi…
Para todos os efeitos, tenho orgulho em dizer:
- Eu, sou do Bairro Alto!

terça-feira, agosto 24, 2010

Pura das Verdades

A Pura das Verdades.



Não tenho tempo para nada, mas a minha vida já não me pertence, pois afinal, vendo bem, o que fora esta coisa de eu nascer, procriado por uma sociedade que nunca me devotou amor e por um Pais que rapidamente se esqueceu de mim?

Vivera cem anos... ou vivera, apenas, oito ou nove intensamente e o resto fora...?

Discordar disto e daquilo, mas cumprir sempre as vontades e os preconceitos dos outros? Grande e terrível verdade, esta. Para não levar pancada, para ter diante de mim o pão e as sopas... eu obedeci, a professores, a chefes e chefezinhos.

Hoje sou o que os outros me obrigaram a ser... Um homem ajuizado, útil, domesticado, como a massa de um bolo que se deita numa forma e se leva ao forno.

Sou o que eles quiseram que eu fosse — mas mereceu a pena? Mereceu a pena esmagar a criança que em mim viveu para entrar no tal mundo construído por adultos cheios de juízo, muito práticos, muito bem comportados? E que mundo é esse?

Hoje, ainda não posso responder: vivemos um tempo cheio de injustiças e de desigualdades, a abarrotar de hipócritas e malandros. Um tempo habitado por homens e mulheres apressados, autênticos fantoches, avaros de amor e de ternura, onde a maioria nem talvez saiba o que isso é!...

Excerto do livro O Tritão de Romeu Correia
(Tive a sorte de conhecer o Romeu Correia, e este é um dos meus livros preferidos e este excerto representa bem aquilo que acho e penso, só tenho pena de não ter sido eu a escrever isto...)