quinta-feira, junho 01, 2023

Dia da Criança de 2023

Uma vez que é dia da Criança, aqui deixo uma página do meu livro "Estórias do meu eu" onde conta como foi a minha infância.
Estórias do meu Eu, sou do Bairro Alto!!!


No meu bilhete de identidade consta: nascido em Alcântara, mas deveria dizer nascido no Bairro Alto, pois foi aí que fui feito, mais propriamente na Rua São Boaventura, n.º 87, para onde fui viver assim que saí da maternidade e onde vivi até aos 10 anos.
Vivi a minha infância e grande parte da adolescência nesta zona típica de Lisboa, de ruas estreitas e empedradas adjacentes às zonas do Carmo e do Chiado, designada como Bairro Alto, outrora conhecida como Vila Nova dos Andrades.
Convivi com cenários e personagens que me deixaram uma memória muito rica (e motivadora), na companhia do meu pai. Cresci por redacções de jornais já extintos, Conservatório Nacional (local de trabalho dos meus pais durante vários anos), bares e casas de fado, bailarinas e arlequins...
Conheci a “fina flor “ das artes e da cultura, na Brasileira do Chiado ou no Coche Real e as suas tertúlias. O meu imaginário infantil está repleto de personalidades públicas que conheci nesse tempo, das quais destaco:
O Dr.Gustavo Soromenho, João Mota, Abílio Belo Marques, Carlos Paredes, Adriano Correia de Oliveira, Maluda, Baptista-Bastos, Beatriz Costa, Jesus Ferreira, Agostinho da Silva, Maestro Vitorino de Almeida, entre dezenas de outros, que todos os dias tomavam café com o meu pai e que eu acompanhava desde bebé.
Acho que quase tudo o que fiz na minha vida começou no Bairro Alto, senão vejamos: dei os meus primeiros passos nos jardins do Príncipe Real e São Pedro de Alcântara; aprendi a ler na Rua Luz Soriano, onde fiz a escola primária, mesmo ao lado do extinto “Diário Popular”. Sobre a minha escola primária, tenho ainda uma estória curiosa: todos os dias, antes de ir para as aulas, passava na Rua da Rosa, numa padaria que ainda hoje existe, comprava duas
bolas de Berlim fresquinhas, acabadinhas de fazer e levava-as comigo para comer no intervalo. A minha pasta da escola tinha sempre um cheirinho a bolas de Berlim que ainda hoje guardo na memória. Nunca mais comi bolas de Berlim como aquelas...
Como já disse, os meus pais trabalhavam no Conservatório Nacional e assim que acabavam as aulas, eu ia para lá e levava os meus colegas de escola para brincarmos. Eles ficavam maravilhados, pois todos os dias conheciam, ao vivo e a cores, os actores que lhes entravam pela casa adentro através da TV. Estou
a lembrar-me do Rui Mendes, que na altura fazia a série portuguesa “Duarte e Companhia”, da São José Lapa, João Mota, José Peixoto, que fazia a série “Retalhos da Vida de um Médico” e muitos outros... Lá brincávamos livremente, por entre pianos e cenários de uma ou outra peça de teatro ou ópera.
Ouvíamos os músicos a tocar e víamos os actores a ensaiar as suas peças. Às vezes íamos ver o meu pai pintar, o que era sempre uma maravilha.
No Bairro Alto tive contacto com as primeiras exposições de pintura e com as primeiras tertúlias de intelectuais que falavam de assuntos que viriam a contribuir para o meu crescimento intelectual que, para algumas pessoas, até foi precoce...Uma vez, numa dessas tertúlias, como via todos os desenhos feitos nos papéis das mesas, eu também desenhei um. Fiz um retrato do meu pai. Um amigo dele que lá estava, achou piada ao desenho e perguntou-me o que ele representava, ao que eu respondi: “É o retrato do meu pai, que também é artista”... No dia seguinte esse desenho saiu no Diário Popular com a seguinte legenda:
“Sou o Henrique Tiago, tenho 4 anos e desenhei o meu pai que também é artista”.
Ah! esse amigo do meu pai era o Mestre Zé de Lemos que fazia o “Riso Amarelo”, no Diário Popular.
Aqui ainda, andei na Escola Preparatória Fernão Lopes, à Rua das Chagas, e depois passei para a Escola Secundária D. Maria I, na Calçada do Combro, escola esta já extinta.
Foi na Biblioteca Municipal Camões que em 1995 fiz a minha primeira exposição individual de pintura, onde estiveram presentes várias personalidades, entre as quais o escritor Altino do Tojal, o actor Ricardo Amaro, os jornalistas Manuel Geraldo, Raúl Oliveira, José Matos Cruz e o Dr. Raul Rego, que sobre essa exposição escreveu o seguinte: -“Henrique Tigo é filho do pintor H. Mourato,
logo está tudo dito. Embora na sua pintura nada os una. Henrique Tigo é um pintor - livre dos Novos Tempos, é um poeta. Pois para podermos ver a sua pintura, primeiro temos de a ler. É um pintor original e sensualista, agarrado à grande esperança de um Mundo Melhor”.
Foi na FAUL, bem em frente ao Jardim de São Pedro de Alcântara, que entrei para a política, também pela mão do saudoso Dr. Raul Rego e do Eng. António Guterres.
O mundo dá muitas voltas e passados 30 anos voltei para o Bairro Alto, desta vez para trabalhar, pois trabalho na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, no Largo Trindade Coelho, local onde em criança ia levar as minhas vacinas e onde adquiri uma fobia a seringas.
Mas para mim o Bairro Alto era algo mais, pois nos anos 30 e 40 começaram a dar-se as grandes vagas de deslocação populacional, de norte a sul, para a capital. Para o Bairro Alto vieram muitos “Beirões”, entre as quais os meus avós maternos, que depois de terem casado na Igreja da Encarnação, no Largo
Camões, foram morar para a Rua dos Mouros. Foi aí que o meu pai começou a trabalhar numa tipografia, instalada nessa rua, e foi também aí que ele conheceu e se apaixonou pela minha mãe.
Neste bairro viviam centenas de pessoas da “terra”, nome que se dava a quem era do mesmo concelho e morava em Lisboa. Tinha então, a morar no Bairro Alto, tios, primos e primas.
Bairro Alto é um dos bairros mais pitorescos da cidade, com casas seculares e pequeno comércio tradicional, como o do “Zé do Lugar” que vendia todo o tipo de vegetais e pequenos animais vivos, como coelhos, patos e galinhas.
Tínhamos ainda a taberna do “Zé Barata”, onde provei pela primeira vez uma pastilha elástica.
Esta zona típica foi construída mais ou menos em plano octogonal em finais do século XVI.
Mudam-se os tempos e o Bairro Alto mudou, deixou de ser uma “aldeia” dentro da cidade, onde era normal verem-se as chaves na porta ou as portas abertas, para nos anos 80 do século passado, ser a zona mais conhecida da noite lisboeta, com inúmeros bares e restaurantes a par das casas de Fado.
Abandonaram o bairro quase todos os órgãos de imprensa portugueses, o Conservatório Nacional, e as tipografias, com a chegada dos computadores, começaram as fechar ou a mudar-se para locais mais sossegados.
Parte dos prédios foi ou está a ser recuperada, mantendo-se a traça original, oque veio permitir a instalação de novos e alternativos espaços comerciais, vendo-se agora desde lojas de multimarca a lojas de tatuagens e body piercing.
Diz-se que o Bairro Alto era uma zona de prostituição e alguma criminalidade,
é verdade, mas havia uma certa ética. Quem se dedicava a esse tipo de actividades, não se metia na vida dos moradores e até os “protegia”. Lembro- me que há algum tempo, já não vivia no Bairro há mais de dez anos, tive uma sessão Maçónica no Bairro Alto, à noite, que acabou muito tarde. Quando saí dessa sessão e me deslocava para um táxi, passei numa rua mais isolada e sombria e vi um grupo dirigir-se a mim... de repente oiço uma voz a dizer: - Eh, pá! Não te metas com esse..., ele nasceu cá no Bairro! E desapareceram... Eu segui a minha vida e eles a deles, até hoje estou para saber quem foi... Para todos os efeitos, tenho orgulho em dizer:
- Eu sou do Bairro Alto!
"in Estória do meu Eu" pagina 7 Edição Ideia Fixe de 2018