HOMENAGEM
a JOAQUIM EVÓNIO
(Do afilhado Henrique Tigo)
Joaquim Evonio, meu Padrinho.

Tenho tantas histórias, tantas memórias… vou
começar pelo fim, quando, naquele dia de verão, uns senhores o levaram para
trás de um pano, onde o iam transformar em cinzas!!!
Até aquele momento, estava frio e distante, como
uma rocha, sem verter uma lágrima, mas naquele momento vieram todas de uma só
vez…
No dia anterior, fui o último a sair do seu
velório, apaguei a luz olhando para o seu caixão e disse-lhe: “Padrinho vou
ali fumar um cigarro e já volto…”
Dias antes tinha estado no hospital; confesso que aguentei
até ao fim para o ir visitar, pois na minha cabeça, aquele “monstro sagrado”
estava bem e ia sair a qualquer momento; depois tive a noticia que afinal não
era assim, que ele só ia sair de lá numa caixa de pinho…
Disseram-me que ele estava farto de perguntar por
mim, pelo seu afilhado…
Sai do trabalho e subi a rua; foram os mais
difíceis 300 metros da minha vida, passou-me tudo pela cabeça, tive medo do que
ia encontrar; entrei no hospital, havia militares por todo o lado, cheguei à
senhora da recepção e disse-lhe: “Quero visitar o Sr. Joaquim Evonio de
Vasconcelos” e ela respondeu-me: “ O Sr. Coronel está no 7 andar, quarto
tal…” Lá fui a medo, parei à porta do seu quarto, respirei fundo e entrei.
Lá estava o meu padrinho, deitado com uma mascara
na cara; mas, de resto, igual a si mesmo, com as suas barbas brancas, o seu
cabelo todo.
Cheguei-me ao pé dele, dei-lhe aquele beijo que
sempre lhe dei, e disse-lhe: “Então padrinho, como é??? Um dia tão bonito e
você aqui deitado…” Tirou a mascara e disse-me: “ Então oh
desgraçado!!!… onde tens andado?” e vi nos seus olhos uma lágrima de emoção
por eu estar ali.
Ali ficamos os dois, mais de uma hora, falei…falei,
notava-se que ele estava com dificuldade em respirar, mas ainda me disse para
eu ir buscar o computador dele, para vermos as novidades na Varanda das
Estrelícias, mas como ele estava muito cansado, lá lhe disse que faríamos isso
noutro dia…
Agarrei na sua mão e ficamos ali uns 10 minutos, de
mãos dadas; depois disse-lhe que tinha de ir, mas que voltava no dia seguinte.
Confesso que saí de lá, com esperança que ele se
recuperaria; liguei a minha madrinha, a contar-lhe o que se tinha passado e a
transmitir a minha mensagem de esperança.
No dia seguinte (quinta-feira) voltei, não me
queriam deixar entrar, pois já lá estava muita gente: a minha madrinha, a minha
prima Pakika, o meu Pai e o Manuel Antunes, mas eu lá entrei na mesma, dei-lhe
um beijo, fiz uma festa na mão e saí…
Na sexta-feira não fui lá, só foi o meu Pai, que
foi das últimas pessoas a vê-lo com vida…
No Sábado estava na auto-estrada quando o meu
telemóvel tocou: era a minha mãe a dar-me a noticia, com muito medo da minha
reacção… Confesso que foi um misto de sensações: raiva, descrédito, tristeza,
etc, etc.
Aquele “monstro sagrado” tinha-me deixado, tinha
feito comissões na Guerra do Ultramar, 17 operações com anestesia geral, tinha
lutado contra tudo e contra todos e agora desaparecia assim…tinha-me deixado…
Olhando para traz - na minha vida - ele, tinha lá
estado, nos momentos mais importantes.
Sem barba, com barba, nas minhas exposições, na
defesa da minha tese de licenciatura, na mesa de honra dos lançamentos dos meus
três últimos livros... fez a revisão dos meus textos, dos meus livros, das
minhas teses; dizia que eu tinha boas ideias, mas que escrevia mal, devia-me
dedicar só a pintura e deixar a escrita, mas eu sei que - no fundo - ele tinha
orgulho de mim e do que eu escrevia…
Lembro-me de ele dizer cheio de orgulho: “Este é
Dr.!!! Eu estive lá… e vi a defesa da sua tese!!!”
Eu e o meu pai fizemos a exposição oficial dos 500
anos do Funchal, e, quando dei por mim, o Padrinho estava lá; tinha-se metido
num avião e tinha ido à Madeira, para estar connosco e para a inauguração da
exposição.
Durante anos todas as sextas-feiras jantamos juntos.
Estávamos juntos a jantar quando o meu Pai teve o ataque cardíaco, e ele fez
tudo para salvar a vida do meu pai…
Esteve no meu casamento, ao meu lado no altar, foi
o último a sair do meu casamento, levou livros e deu-os a todos: quando dei por
mim estava toda a gente à volta dele, enquanto ele declamava e dava autógrafos!
Ainda hoje, quando entro na sua casa, estou sempre
a espera que ele saia do escritório a gritar: “Estás cá oh desgraçado!!!”.
Passados uns dias do seu desaparecimento físico, a
minha madrinha chamou-me lá a casa e disse-me: “ O teu padrinho, queria que
tu ficasses com o carro dele…” e assim todos os dias estou mais perto dele…
ele mora no meu coração, na minha alma!!!
Por isso tenho orgulho em dizer: O Evonio é o meu
amigo, é o meu padrinho, e tudo farei para não deixar apagar a sua memória.
Este “monstro sagrado” deixou a Ilha da Madeira,
para vir para a Capital do Império, para ser militar; por Portugal perdeu a
ponta de um dedo, um pé, fez 17 operações, criou a Protecção Civil, e deu voz
aos “artistas” desde mundo através da Varanda.
E hoje esteja ele onde estiver, tenho a certeza que
- entre um copo e um cigarro - continua a plantar a semente da palavra.
Henrique
Tigo
(afilhado)
Ilustração H. Mourato
Ilustração H. Mourato